2018: Uma conjunção astral

Memória do Observatório: Episódio 3/5

Uma série de fatores cria a conjunção perfeita para a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados. Esse cenário resulta em uma ”corrida de cavalos” entre os projetos que tramitam no Senado, favorecido pelo governo Temer, e Câmara, que contou com uma participação mais significativa de setores variados da sociedade.

1.

No início de 2018, a expectativa pela aprovação de qualquer um dos Projetos de Lei de proteção de dados era baixa. No entanto, o ano trouxe uma série de fatores que Danilo Doneda chamou de “Conjunção Astral” e fez com que a LGPD se tornasse realidade.

2.

Em 18 de março, o escândalo da Cambridge Analytica assombra o mundo com a revelação de que a empresa de marketing político usou dados de usuários do Facebook em propagandas segmentadas que influenciaram na eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, e na saída do Reino Unido da União Européia, o Brexit.

3.

No dia 13 de abril, torna-se público o desejo do governo brasileiro de ingressar na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Socioeconômico (OCDE), que exige, como boa prática, a regulamentação de uso de dados pessoais, assim como um órgão supervisor independente e autônomo.

4.

Já em 25 de maio, entra em vigor o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia, o que por um lado força multinacionais a se adequarem à nova regra, e por outro, acirra a necessidade de mais segurança jurídica no uso de dados dentro do Brasil.

5.

Na Câmara dos Deputados, uma articulação exige a aprovação do PL 5276 antes que a casa dê continuidade à tramitação do Cadastro Positivo, agenda econômica prioritária do governo Michel Temer (MDB).

6.

Para completar, as sucessivas acusações de corrupção contra Temer enfraquecem o Executivo frente ao Legislativo. Com o prazo curto para aprovação por conta da proximidade da Copa do Mundo de 2018 e das eleições presidenciais, surge o cenário perfeito para a LGPD.

7.

No dia 17 de abril, o Senado promove uma Sessão Temática sobre proteção de dados pessoais, primeira vez em que a pauta é discutida no plenário de uma das Casas do Congresso Nacional.

8.

Apesar do PL 5276 da Câmara ser originário do Executivo, a equipe de Temer priorizou de maneira clara o PLS 330 do Senado.

9.

Em abril, o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM) promoveu uma reunião com diversos parlamentares e entidades para destravar a votação do Cadastro Positivo. Com presença do Idec e de alguns Procons, a mensagem era clara: primeiro era necessário aprovar a LGPD.

10.

Dias depois, Maia juntou Orlando Silva, parlamentares e as entidades interessadas na discussão da proteção de dados para entender o que era preciso para andar com o Projeto. As portas estavam abertas para votar a LGPD, só era preciso chegar a um consenso final quanto ao texto.

11.

Para atingir esse consenso, Orlando senta à mesa todas as partes interessadas e estabelece um processo inusitado: uma leitura conjunta onde seriam debatidos todos os pontos do projeto, um por um.

12.

Ao todo, são quatro reuniões lideradas por Orlando onde sociedade civil, academia e setor privado chegam a um acordo e estabelecem uma parceria pelo texto apresentado. A máxima geral é de que se ninguém ficou 100% satisfeito, então trata-se da melhor versão possível.

13.

Com o tema de proteção de dados em voga, o ritmo de tramitação também acelera tanto no Senado e os dois Projetos entram numa espécie de corrida de cavalos, uma disputa para aprovar primeiro seu texto e ter a palavra final sobre ele.

14.

Com uma redação mais branda em relação ao setor privado e que ignora a atuação do setor público, o PLS 330 é preferência do governo e de uma série de empresas.

15.

Conforme a corrida entre os projetos esquenta, surgem articulações que fazem com que a equipe de Orlando Silva prepare o PL 5276 para ser votado o mais rápido possível.

16.

A disputa entre as casas chega ao fim no dia 29 de maio. O PLS 330 é pautado para votação no Senado, mas a sessão é encerrada antes que isso aconteça. Logo em seguida, o PL 5276 é aprovado de maneira unânime na Câmara.

17.

A unanimidade era importante para conferir peso ao texto e protegê-lo de mudanças quando enviado ao Senado, além de garantir rapidez no processo. Para garanti-la, há um forte trabalho de articulação nos bastidores.

18.

O texto chega ao Senado no início de junho e no dia 14 é publicada uma carta pela criação de uma Autoridade Independente de Proteção de Dados Pessoais assinada por entidades do setor privado, sociedade civil e academia.

19.

No dia 25 de junho, um segundo manifesto é lançado, desta vez liderado pela Brasscom, pela aprovação sem modificações no Senado do texto enviado pela Câmara. Assinado por mais de 80 entidades, ele resultou no surgimento de uma grande Coalizão multissetorial em defesa da LGPD.

20.

Nesse momento, diversos setores da iniciativa privada que não haviam participado da discussão até então tentam – sem sucesso – modificar o teor da Lei.

21.

Sob liderança do senador Ricardo Ferraço, o texto é aprovado no Senado apenas com modificações na redação, sem qualquer alteração no seu teor. Por conta disso, é enviado direto para a sanção do presidente Michel Temer.

22.

Dentro do Poder Executivo, há pressão significativa para que Temer vete grande parte do texto – ou até mesmo faça um veto integral. Gustavo da Fonseca Rocha, então secretário especial dos Direitos Humanos, foi fundamental para frear esse movimento.

23.

No mesmo período, representantes de diversas entidades privadas conseguem se reunir com Michel Temer para convencer o presidente da importância de sancionar a LGPD.

24.

No dia 14 de agosto, Temer finalmente sanciona a LGPD. No entanto, ele faz uma série de vetos. O que mais chama atenção é sobre a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD)Independente. A justificativa é que havia um vício de iniciativa: o órgão não poderia ter sido criado via Legislativo. 

25.

No Brasil para o 9º Seminário de Proteção à Privacidade e aos Dados Pessoais do CGI.br, no início de agosto, a diretora da área de proteção de dados do Conselho da Europa se reúne com o então ministro das Relações Exteriores Aloysio Nunes. No encontro, Aloysio pede que o Brasil se torne observador da Convenção 108+, que trata do tema em âmbito global.

26.

Nos últimos dias de mandato, 28 de dezembro, Temer finalmente cumpre a promessa e cria uma Autoridade via a Medida Provisória 869/2018. No entanto, ao contrário da independência esperada, o texto estabelece um órgão subordinado à Presidência da República. A repercussão é negativa.