Privacidade e proteção de dados no Congresso Nacional

Privacidade e proteção de dados são temas que entraram, definitivamente, na agenda da sociedade, no Brasil e fora dele. Longe de se reduzir a nichos, a preocupação com a privacidade e com o uso indiscriminado de dados pessoais é objeto de séries e propagandas de bancos, além de povoar a produção acadêmica e a mídia. 

Profissionais de diversas áreas debatem, nos mais diferentes espaços, uma série de necessidades, oportunidades e desafios para a privacidade e proteção de dados no Brasil. Será que o mesmo ocorre no processo de elaboração de leis? É o que buscamos mapear com esse projeto.

Os significados da privacidade e proteção de dados ao longo de quatro décadas

Como forma de aprofundar a pesquisa sobre os significados atribuídos à privacidade e proteção de dados ao longo das últimas 4 décadas no Congresso Nacional, a pesquisa ‘’brincou’’ com o conteúdo textual das proposições, identificando, por meio de software, as palavras mais frequentes a cada década, tanto nas ementas quanto inteiro teor. Tal levantamento gerou as nuvens de palavras abaixo, que revelam alguns insights sobre conceitos mais mobilizados e o foco das discussões e propostas no Congresso em cada período. O ano de 2020, em razão de sua expressividade numérica em termos de proposições, gerou uma nuvem de palavras separada para fins de análise. A metodologia completa está no Documento Metodológico do projeto.

1980

O banco de dados tem seu marco inicial na década de 1980, uma vez que, a partir da metodologia adotada, o primeiro Projeto de Lei relacionado à privacidade e à proteção de dados surgiu nesse período. A década apresentou a seguinte nuvem de palavras:

Embora a análise trate da década de 1980 como um todo, vale destacar que apenas um PL foi apresentado em 1981 e os outros referentes ao período foram apresentados em 1989. Dentre as palavras mais frequentes estão, além de termos próprios da legística como “providências” “disciplina” e ‘’regula’’, também as palavras ‘’Constituição’’ (bem como ‘’artigo’’ e ‘’inciso’’, referentes ao Art. 5º, X, que protege a intimidade, vida privada, honra e imagem) e ‘’dados’’.  Tal configuração se deve ao fato de que os projetos do período pretendiam disciplinar a crescente formação de bancos de dados, públicos e privados. No caso dos projetos de 1989, essa leitura se dá a partir do direito fundamental à intimidade, consagrado na Constituição no ano anterior.

1990

A década de 1990, em que o número de propostas à privacidade e proteção de dados pessoais ganhou corpo, gerou a seguinte nuvem de palavras:

Nota-se que continua o protagonismo dos termos associados à previsão constitucional do Art. 5º, X (‘’Constituição’’, ‘’intimidade’’, ‘’imagem’’, ‘’honra’’), a partir de propostas que buscaram regulamentar o dispositivo e, inclusive, tipificar a sua violação (como o PLS nº 181/99).  Além disso, também nesse período ganham destaque proposições voltadas à regulamentação de outro artigo constitucional: o Art. 5º, XII, que protege o sigilo da correspondência,  comunicações telegráficas, dados e comunicações telefônicas (‘’interceptação’’, ‘’autorização’’, ‘’penal’’, ‘’investigação’’). A própria Lei das Interceptações (Lei nº 9.296/96), é importante lembrar, foi aprovada nesse período.

No geral, é possível perceber que o foco da produção legislativa sobre o tema nesse intervalo é bastante alinhado com a privacidade como uma liberdade negativa, ou seja, da não-interferência do  do Estado e terceiros sobre o espaço de intimidade do indivíduo, o que também se reflete em discussões relativas ao sigilo.

2000

De forma ainda tímida, a década de 2000 começa a ver o aumento nos números de proposições, e com isso, uma maior variedade de temas tratados. Porém, o traço marcante da nuvem de palavras dessa década é o protagonismo de referências a leis vigentes (”lei”, ”código”). 

Observando mais de perto a que se referem esses termos na massa de projetos da década de 2000, percebe-se a prevalência das tentativas de alteração do Código Penal e Código de Processo Penal, bem como da Lei das Interceptações (a referência a ”julho”, mês de aprovação dessa norma), com foco em criminalização de condutas e, particularmente, medidas para facilitar investigações criminais a partir do uso de dados pessoais. Por outro lado, também chamam a atenção a referência ao Código de Defesa do Consumidor (”código”, ”consumidor”), aprovado em 1990, e ao termo ”ligações”, que, nesse caso, faz referência a projetos que buscaram limitar práticas abusivas de marketing e importunação de consumidores por ligações telefônicas.

2010

Quanto à década de 2010, também bastante variada, os resultados foram os seguintes: 

É interessante notar, nesse período, dois movimentos: de um lado, surge pela primeira vez, com destaque, o termo ‘’dados’’, o que demonstra o crescimento de uma produção legislativa mais específica sobre dados pessoais e sobre proteção de dados, inclusive de forma desvinculada das noções específicas de intimidade e vida privada mais presente em décadas passadas. 

Além disso, também aparece o protagonismo do termo ‘’Internet’’. Muito embora a expansão da Internet comercial no Brasil tenha iniciado ainda nos anos 90, é na década de 2010 que ela aparece também como motor dos debates sobre privacidade e proteção de dados, o que não pode ser desvinculado da propagação das redes sociais e grandes plataformas. Também é nesse período que se discute e aprova o Marco Civil da Internet (‘’abril’’ aqui se refere à data de aprovação da lei e aos projetos que pretendem alterá-la, propostos desde então). 

Assim, uma observação complementar possível é que o foco na regulação de investigações criminais, inclusive por meio do instituto da interceptação, passa a ser compartilhado com proposições voltadas ao estabelecimento de princípios e direitos na Internet (‘’princípios’’, ‘’direitos’’, ‘’proteção’’), o que engloba também a privacidade e a proteção de dados.

2020

O ano de 2020 foi analisado separadamente pois apresentou um expressivo número de proposições legislativas. Neste ano, irromperam em todas as esferas do debate público questões ligadas à pandemia da COVID-19, que mobilizou também o tema da proteção de dados pessoais no Brasil e no mundo.

Assim, os temas mais discutidos neste ano giraram em torno de questões de saúde pública (‘’saúde’’, ‘’pública’’), o que também se expressa por meio dos termos ‘’calamidade’’ e ‘’coronavírus’’. As palavras “benefício” e “registros” demonstram que o tema da proteção de dados pessoais surgiu nos PLS sobre os cadastros obrigatórios para o requerimento de benefícios oferecidos em razão da situação de emergência.

As nuvens de palavras apresentadas nos dão algumas pistas iniciais para a compreensão do direito à privacidade e do direito à proteção de dados pessoais no Legislativo brasileiro, no seguinte sentido:

  • Em um primeiro momento, o debate legislativo se volta a compreender qual é a dinâmica e o bem jurídico tutelado pelo direito à privacidade. Ao se valer de uma série de termos como intimidade, sigilo, vida privada, esse vocabulário serve para denotar que tal direito se traduz pela capacidade do indivíduo em retrair acesso a um conjunto de informações: uma liberdade negativa que é deflagrada quando tais dados podem ser considerados privados, até sigilosos, e não públicos. Isso é refletido no próprio texto constitucional que além de se valer dessa terminologia (Art. 5º, X) também exemplifica a casa, a correspondência e outros tipos de comunicações como sendo espaços privados que abrigariam o direito à privacidade;
  • Um segundo momento apontou o enquadramento e o tensionamento desse direito diante da necessidade do Estado flexibilizá-lo para fins de persecução penal. Não é por coincidência que é nesse momento em que ocorre a edição da Lei de Interceptações Telefônicas e Telemáticas;
  • Um terceiro momento, em que começa a haver uma virada temática, vê o tema passar a ser identificado como um elemento da defesa do consumidor, para o exercício da cidadania na Internet, e até para fins de assistência social (saúde, renda e etc). Esse é o momento em que começa a se falar mais em dados (em circulação) do que em intimidade e, desta forma, de uma liberdade positiva, que é instrumental para outros direitos e liberdades fundamentais.

Em poucas palavras, a semântica do Congresso Nacional reflete um longo caminho percorrido para o reconhecimento do direito à privacidade, em um primeiro momento, e também do direito à proteção de dados de forma autônoma. Ao longo desses cerca de 40 (quarenta) anos, o vocabulário parlamentar descreve não só uma liberdade negativa do cidadão em bloquear acesso aos seus dados, mas, também, de uma liberdade positiva em fazê-los circular, inclusive para gozar uma série de oportunidades sociais. Pode-se dizer que o ápice dessa semântica é a PEC 17/2019, que é uma proposta legislativa que insere a proteção de dados pessoais como um direito fundamental autônomo no art. 5º da Constituição Federal.

Créditos
O Observatório conta com apoio financeiro do Google e Facebook, além da parceria com a plataforma Sigalei.
Diretores: Bruno Bioni e Rafael Zanatta
Coordenadora Geral de Projetos: Mariana Rielli
Coordenação da pesquisa: Bruno Bioni e Mariana Rielli
Jornalismo de dados: Marcelo Soares
Pesquisadoras: Iasmine Favaro, Thaís Aguiar e Júlia Mendonça
Desenvolvimento do site: Liven