Proteção de dados e concorrência: registros de um debate
No dia 19 de fevereiro, o Data Privacy Brasil organizou o encontro “Proteção de Dados e Concorrência“, com a participação da Ana Frazão, advogada e professora da Universidade de Brasília, […]
No dia 19 de fevereiro, o Data Privacy Brasil organizou o encontro “Proteção de Dados e Concorrência“, com a participação da Ana Frazão, advogada e professora da Universidade de Brasília, Marcela Mattiuzzo, advogada e pesquisadora visitante na Yale University e Lucas Griebeler, pesquisador na Chicago University e consultor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. No evento, os especialistas discutiram questões de extrema relevância, consolidando análises e opiniões em temas pertinentes à intersecção entre a proteção de dados pessoais e o direito à concorrência.
Como reportado no Stigler Committee on Digital Platforms, relatório formulado por mais de trinta especialistas e divulgado pela Universidade de Chicago, a ascensão meteórica das plataformas digitais como Google, Facebook, Amazon e Apple nos últimos quinze anos tem suscitado questões centrais sobre seu poder, sobre a eliminação da concorrência e sobre os métodos de exploração de dados pessoais.
Há diversos efeitos econômicos em jogo. Há efeitos em rede (quanto mais pessoas utilizam a plataforma, mais atrativo o produto se torna), economias de escala e escopo (custo de produção e expansão em outros setores diminui ao passo que a empresa cresce), custos marginais próximos ao zero (o custo de inclusão de novos consumidores é próximo ao zero), altos retornos com relação ao uso de dados (quanto mais dados estão sob controle, melhores as condições de aprimorar produtos) e baixas barreiras à expansão global. Todos esses elementos convergem para um efeito dominante (que poderia ser traduzido como “o vencedor leva tudo”) que aumenta o poder das plataformas e coloca em discussão os efeitos danosos gerados aos consumidores diante da ausência de alternativas e práticas de orquestração e manipulação das escolhas das pessoas. Aqui reside o problema dos “padrões escuros”, que induzem as pessoas a ficar mais tempo online, cedendo grandes quantias de dados pessoais, a partir de escolhas pré-configuradas e arquiteturas de sistemas indutivas à exploração da atenção.
O objetivo do encontro foi apresentar, de forma didática, as principais questões nesse debate e ressaltar o caminho de convergência entre proteção de dados pessoais e direito da concorrência, uma agenda que tende a mobilizar tanto o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência quanto a Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais.
Problemas emergentes na intersecção entre concorrência e dados pessoais
Em sua fala introdutória, Ana Frazão explicou a interação entre o direito da concorrência e a proteção de dados pessoais. De acordo com a professora, esta é uma interação que permeia todas as áreas jurídicas, especialmente as que lidam com o mercado, no contexto do data-driven capitalism, proposto por Frazão como fenômeno decorrente do Surveillance Capitalism, conceito explorado por Shoshana Zuboff como a nova modalidade de acumulação do capital, que monetiza dados adquiridos por meio de processos de vigilância, marcadamente caracterizado por: (i) a direção através de mais e mais extração de dados e análise; (ii) o desenvolvimento de novas formas contratuais usando monitoramento computacional e automação; (iii) o desejo de personalizar e customizar os serviços oferecidos para os usuários de plataformas digitais e (iv) uso de infraestrutura tecnológica para executar experimentos futuros em seus usuários e consumidores.
Sob tal perspectiva, Frazão aponta que os dados pessoais não são apenas o “insumo” das relações econômicas, mas que são cada vez mais a “mola propulsora” de diferentes mercados, permeando praticamente toda e qualquer atividade econômica. É nesse contexto que o Direito da Concorrência se insere, lidando tradicionalmente o poder econômico, mas que também se converte em poder político.
A amplitude da utilização de dados pessoais, nesse sentido, por não se restringir apenas ao poder econômico, também deve dizer respeito a outras áreas do Direito, como o Direito do Consumidor, os Direitos da Infância, entre outros.
É nessa capilaridade que surge, segundo Marcela Mattiuzzo, a aposta de que o Direito da Concorrência poderia atuar em diferentes aspectos regulatórios, deixando para trás os tradicionais ópticas da eficiência econômica e bem-estar do consumidor, teoria adotada pelos chamados “neo-brandesianos”, escola norte-americana.
Um dos grandes teóricos que apontam para a importância da nova capilaridade do Direito Antitruste, em oposição à visão tradicional de Chicago, é Tim Wu, professor da Universidade de Columbia e universalmente conhecido pela produção acadêmica sobre neutralidade de rede. Wu entende que o consumer welfare approach cria limitações quando observado como única chave de análise, e criaria limitações para a aplicação da legislação antitruste nos EUA (Wu, 2016). Em março de 2021, Joe Biden nomeou Tim Wu para o National Economic Council.
Para Mattiuzzo, no entanto, o problema dessa solução é de que não existiria uma forma concreta de se compreender como essa abertura de olhar do Direito Antitruste poderia reverberar em medidas práticas de enforcement concorrencial, sem que uma área do conhecimento dominasse outras. Para a advogada, o exemplo europeu demonstra que as tentativas de resolver esse problema levaram à compreensão de que o Direito Antitruste não pode dar conta de tudo, criando-se mecanismos alternativos de regulação que não estão voltados apenas ao Direito da Concorrência.
No Brasil, existe uma questão ainda mais alarmante quanto às operações de concentração ligadas à proteção de dados pessoais: muitas operações sequer são analisadas pela autoridade competente (Cade) pelos critérios de notificação adotados pela Lei da Concorrência.
Em sua intervenção, Lucas Griebeler apontou que, no Brasil, os critérios adotados são o impacto do ato de concentração no próprio território nacional e o faturamento em território nacional, além do valor do ato de concentração, o que difere de países como EUA, Austrália e da União Europeia como um todo, que adotam o critério do faturamento mundial e não possuem um valor preestabelecido do ato de concentração para notificação à autoridade competente. É por essa razão que muitas operações ocorridas em território brasileiro, como a compra da Waze ou Google Fit-Bit, apesar de terem altíssimo impacto do ponto de vista da concentração de poder informacional, não foram analisadas pelo Cade. Em julho de 2020, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor enviou representação ao Cade, cobrando que a entidade investigue a operação de compra da Fitbit pela Google.
Os aprendizados após o caso Facebook-Whatsapp
Para Frazão, o antitruste se preocupou por muito tempo com o Direito do Consumidor apenas pela ótica da precificação, ou seja, reduzia a análise e aplicação do pilar do “bem-estar do consumidor” apenas sob a percepção do preço de determinado produto. Mas, para a professora, essa uma visão reducionista e limitada em vários dos mercados digitais, especialmente tendo em vista que, na maior parte dos casos, não há efetivamente uma troca pecuniária entre o consumidor e a empresa, já que a maioria dos serviços digitais é prestado de forma “gratuita”. Em sua fala, reforça que essa foi uma das principais visões que mudaram de 2014 para os dias de hoje, na medida em que, atualmente, é possível compreender que a contrapartida fornecida pelo consumidor são justamente os seus dados pessoais e não efetivamente uma contribuição pecuniária pelo serviço prestado.
Além disso, hoje a privacidade é vista como um pilar do sistema democrático, de modo que, mesmo do ponto de vista de uma análise tradicional (escola de Chicago), não seria possível se isentar da análise também do ponto de vista da privacidade pelo Direito Antitruste, justamente em busca do pilar bem-estar do consumidor. Nesse sentido, a decisão da Comissão Europeia de 2014 não deveria e não poderia – nos dias atuais – se isentar da análise do ponto de vista da privacidade e da proteção de dados.
Mattiuzzo relembra que, na decisão da Corte Europeia, foi possível observar um esforço em separar, conceitualmente, dados pessoais e privacidade. Nesse sentido, a Comissão teria observado que a discussão sobre privacidade, diferentemente da análise do ponto de vista dos dados pessoais (que foram analisados pela Comissão como um insumo, pelo ponto de vista de conceitos do Direito Concorrencial, como barreira-insumo, etc), não caberia, no que Mattiuzzo chamou de “batalha de enforcements”, à Comissão, uma vez que – vale salientar – a Europa já estruturava Data Protection Authorities (DPAs) e poderiam contar com estas para a regulação da privacidade no bloco.
A polêmica Google-FitBit
A atuação relevante das organizações da sociedade civil – especialmente as ligadas ao Direito do Consumidor – no caso Google Fit-Bit demonstram, justamente, essa tendência de abertura da ótica do Direito da Concorrência, segundo Frazão. A professora salientou a importância da intersecção entre Direito do Consumidor e Direito Antitruste no que diz respeito à proteção de dados pessoais, uma vez que a atuação conjunta das duas frentes permitiria a ampliação e mitigação da tendência do olhar voltado apenas para o preço, proposto pela Escola de Chicago até então. Por conseguinte, a atuação das organizações da sociedade civil no caso foram e continuarão sendo de extrema importância para análise, por exemplo, da qualidade do serviço, que, como concluiu-se, não é a vertente mais relevante quando o assunto é prestação de serviço digital.
Entre promessas e remédios
O Fitbit é uma empresa de capital aberto e a Google menciona que a aquisição se deu pela finalidade de hardware, mas, para Griebeler, que estudou os relatórios dos últimos anos da empresa e – posteriormente – publicou o texto Why We Should Be Careful About Google’s Promises in the FitBit no portal Promarket da escola de economia da Universidade de Chicago, ao analisar os dados financeiros do Fitbit, restam dúvidas quanto a real intenção da aquisição. Segundo o pesquisador, a empresa tem apresentado prejuízo há vários anos e, se o mercado por si só precificou mal a empresa nos últimos anos, a única forma de criar receita a partir desta seria utilizando os dados pessoais para outras finalidades.
Para Griebeler, ainda que tenham sido determinados remédios contra o ato de concentração para, por exemplo, proibir o uso para marketing, os remédios não atingem o mercado de saúde, por exemplo, que tem sido cada vez mais investido pela empresa, conforme informam diversas reportagens de grandes veículos de mídia americanos.
Embora a Comissão Europeia tenha apresentado um auditor independente, Griebeler afirma que a averiguação e verificação do cumprimento dos remédios estabelecidos é bastante complexa e, no fim do dia, a própria empresa será a entidade que irá concentrar todas as informações sobre o real impacto da aquisição da Fitbit do ponto de vista da concentração de mercado e da proteção de dados pessoais.
Antitruste como questão política?
Mattiuzzo aponta que ainda há muita indefinição sobre o cenário, especialmente no que diz respeito à atuação do FTC. Mas, para a advogada, existe um esforço legislativo, especialmente dos estados americanos, em se criar uma lei de proteção de dados. Mas, ainda há uma dificuldade de observar como essa lei seria criada e aprovada. Há a necessidade, segundo a análise, dos democratas, de aproveitarem a oportunidade histórica de aprovar a lei, já que possuem maioria nas duas casas legislativas.
No entanto, o acontecimento do Capitólio e esse esforço legislativo nem sempre são convergentes, na medida em que, após o ocorrido, a pressão social e política sobre as plataformas tem sido muito mais no sentido de aumentar a moderação do conteúdo postado nas redes do que propriamente regular o ambiente da privacidade e da proteção de dados no país. É difícil, com isso, definir precisamente o que irá acontecer e em que tempo todos os processos apontados irão se consolidar.
Perpassando os key-points da discussão, é possível depreender que o Direito à Concorrência é um dos pilares que seguram a proteção de dados pessoais no Brasil e no mundo. Como é sabido, a consolidação do direito à privacidade e à proteção de dados pessoais não se dá apenas pela implementação de uma lei única, mas através da aplicação de leis setoriais, como o Código de Defesa do Consumidor, o Código Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outras. Nesse sentido, não há a possibilidade de uma visão única ou segmentada para a implementação do direito fundamental, especialmente no que diz respeito ao viés econômico do uso de dados pessoais. Conclui-se, desse modo, que a maior riqueza e multisetorialidade do debate importa para o melhor interesse da sociedade como um todo e em sua complexidade.
Indicações de leituras dos participantes:
Hovenkamp, Herbert J., “Antitrust and Platform Monopoly” (2020). Faculty Scholarship at Penn Law. 2192.
Stigler Committee on Digital Platforms, Relatório FInal, Setembro 2019, disponível em https://www.chicagobooth.edu/-/media/research/stigler/pdfs/digital-platforms—committee-report—stigler-center.pdf
Concorrência em Mercados Digitais: uma revisão dos relatórios especializados, Cade, 2020, disponível em https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2020/documento-de-trabalho-n05-2020-concorrencia-em-mercados-digitais-uma-revisao-dos-relatorios-especializados.pdf
Frazão, Ana. Um Direito Antitruste Para o Século XXI, 2020. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/um-direito-antitruste-para-o-seculo-xxi-8-25112020
Yale project, digital platforms and Antitrust: https://som.yale.edu/faculty-research-centers/centers-initiatives/thurman-arnold-project-at-yale/digital-platforms-and-antitrust
Frank H. Easterbrook, “Limits of Antitrust,” 63 Texas Law Review 1 (1984). Disponível em https://chicagounbound.uchicago.edu/journal_articles/1153/
Por Iasmine Favaro & Rafael Zanatta